quarta-feira, 5 de março de 2008

Capítulo 2

Passava um pouco das sete horas quando ele acordou naquela manhã de domingo. Miguel olhou pela janela e viu a torrida chuva caindo nas folhas das mangueiras e soube no mesmo instante que finalmente o inverno havia chegado para valer. Ao menos na Cidade das Mangueiras havia chegado a “época das chuvas”, o “inverno” dos paraenses, embora no resto do Hemisfério Sul fosse verão, pois só havia duas estações bem definidas em Belém do Pará: a estação em que chovia muito e a estação em que chovia pouco, ou seja, “inverno” e “verão” respectivamente.

Levantou-se da cama, passou pelo banheiro e depois de um banho morno sentou-se a mesa para comer uma tapioca com manteiga e outra com coco ralado – molhado com leite de coco – e tomar um suco de bacuri que tanto gostava. Pensava consigo mesmo no sabor incomparável do bacuri, talvez só rivalizado com o do cupuaçú, embora este último tivesse um atrativo a mais: o cheiro enebriante que por si só já salivava a boca.

Quando a última gota de suco foi sorvida, o celular tocou. Sua vida iria mudar para sempre depois daquela ligação. Como que pressentindo um futuro ainda inexistente, lembrou-se do dia em sua infância em que viu pela primeira vez o Círio de Nazaré de perto e, neste instante, aquele antigo sentimento de profunda comunhão manifesto em uma onda humana de fé, que havia caído há muito no esquecimento, o fez dizer um comando corriqueiramente ordinário como se fosse uma oração de súplica:

– Atender telefone...

Era uma vídeo-chamada e por isso, como acabara de sair do banho, preferiu redirecioná-la para a televisão, somente como forma de protesto.

As palavras soaram mais monótonas dessa vez, pois ele agora estava irritado com a petulância de quem queria uma videoconferência logo pela tenra manhã de um dia de domingo. Talvez fosse alguém do laboratório querendo impressioná-lo com uma demonstração patética de inexistência de vida pessoal e total subserviência ignóbil ao trabalho. E Miguel detestava essa herança da ética protestante, pois achava que a máxima “o trabalho dignifica o homem” só servia para criar serviçais resignados com a vida de gado que eram moldados a cultivar, sem vontade de gritar, sem nada a dizer.

– Exibir cel-TV! – disse ao olhar de soslaio para a televisão de plasma de cinquenta polegadas.

A imagem da jovem que apareceu em meio a brumas fantasmagóricas lhe chamou a atenção imediatamente.

Lágrimas escarlates arranhavam-lhe a face de tez esvaecida! E ainda assim, a altivez de um anjo vingador cingia-lhe o cenho, como um diadema na fronte de uma rainha.

– A Lua! – uma voz capaz de comandar um deus soou de forma límpida e ao mesmo tempo embargada.

Quando o som já não se fazia mais ouvir, a não ser na mente atônita de Miguel, a ligação terminou tão inesperadamente quanto havia começado.

Ele se percebeu tremendo de frio na mais completa escuridão. Estava ainda em sua casa, mas já era noite. E lá estava ela, através da janela: a Lua! Impávida e colossal como ele nunca a havia visto! Contudo, havia algo de horripilante que fez seu sangue gelar mais que sua pele: a Lua estava rubra, escarlate como as lágrimas da jovem que ela vira pela manhã – se é que aquilo não passara de um sonho – ou talvez fosse um devaneio febril o fato dele ter perdido uma manhã e uma tarde de sua vida, se é que fora só esse o lapso de tempo que transcorrera. Nada mais parecia estar no mesmo lugr e na mesma ordem.

Mas aquela Lua cor de sangue trouxe-o de volta a terra dos vivos, ainda que ele, naquele momento, mais parecesse um ébrio desperto. Imediatamente a voz da jovem voltou a reverberar em seu cérebro e ele disse de forma cálida:

– A Lua!

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