Após doze longos e extenuantes anos atuando como membro ativo de sua comunidade paroquial, Miguel viu sua fé desvanecer como testemunhou definhar a chama de vida de sua amada esposa, vítima de um trágico e fulminante câncer ósseo. Foram meses de agonia compartilhada por duas almas que haviam prometido viver juntas até que a morte as separasse... e assim foi.
Sua dor parecia não poder ser maior... mas foi! Além da dilacerante sensação de perda de uma companheira tão fiel e amiga – explorando ao máximo a literalidade destas palavras – Miguel viu-se lançado no vale desolador da falta de esperança. Falta de esperança esta motivada pela aterradora constatação que toda a sua auto-proclamada fé no “Senhor Ressuscitado” simplesmente desmoronou ante a percepção indelével da proximidade de sua própria morte, que inexoravelmente tornou-se a única certeza restante. Não obstante, foi particularmente desconcertante para uma pessoa que por toda vida buscara arduamente virtudes tais como a compaixão e piedade para com os seus semelhantes, o medo paralisante que se instalou em seu coração com relação a sua própria mortalidade em detrimento a qualquer sentimento mais reconfortante relacionado com a morte de Valéria – amada e devotada cônjuge por alegres, inesquecíveis e incomensuravelmente belos sete anos. A acalentadora e pia crença na “Vida Eterna”, ofertada pela “Misericórdia Divina” aos “Justos” no “Último Dia” deixou de fazer parte de sua mais idiossincrática construção intelectual do mundo. A fé de Miguel havia morrido com Valéria.
Tal qual o câncer que aos poucos consumiu a chama de uma vida tão radiante quanto a de sua amada, um súbito e aterrador sentimento passou a tirar-lhe o fôlego e o fazia acordar resfolegante durante a noite em acessos de pânico dignos de um condenado a cadeira elétrica às vésperas de seu derradeiro dia como “estorvo” – como é cômodo pensar – para a sociedade.
Tal sentimento chamava-se vaidade! Vaidade pura e selvagem em sua forma mais primitiva e depravadamente desnuda, que traduziu-se num desesperado apego a própria existência física neste mundo. Uma angústia quase palpável apossou-se dele de tal forma que o fez idolatrar sua própria consciência do “eu” – o “eu” que faz todo homem ser verdadeiramente humano – e repugnar a mera menção da dor lancinante que era o conhecimento intrínseco ao mais remoto recôndito do seu âmago de que, desde o exato momento de sua concepção, ele estava fadado a retornar ao “não-existir”, ao lugar comum da matéria inerte que constitui o universo que lhe emprestava o sumo e propiciava-lhe uma tênue experiência de divindade que a hermenêutica humana convencionou chamar... vida!
Outrora a fé mantinha-o resignado perante tão desnorteadora verdade, mas a vergonha de tão degradante demonstração de auto-piedade o fez perceber que o que mais lhe causava tormento não era a falta de Valéria, e sim os constantes acessos de pavor ao pensar em sua própria morte. Era sobremaneira vergonhoso para alguém tão despojado de orgulho e por demais doado aos menos favorecidos de toda espécie. Pensar primeiro em si e menosprezar a perda dela – ainda que isto rendesse-lhe profícuo amargor em vários momentos – não era aceitável e pois em xeque as poucas crenças que ainda lhe restavam.
Foi então que Miguel decidiu mudar para uma pacata cidade do interior, deixando para trás uma próspera e já consagrada carreira de engenheiro de uma grande empresa. Era um auto-exílio e ao mesmo tempo uma peregrinação desesperada em busca do que se perdera. Ao menos era isso que ele vivia repetindo vezes a fio, como quem quer convencer a si mesmo de algo que não se faz crível por conta própria. E assim foi...
O passar do meses deu lugar ao passar dos anos. E nem as águas gélidas dos igarapés mais tintos como vinho ou mesmo o gosto cálido de um mar salobro e argiloso puderam fazer Miguel esquecer o ardor de um coração bombardeado pela fadiga da solidão que acompanha indelevelmente cada ser humano até o túmulo.
Mas não importa o tamanho da dor que as feridas impingidas pela vida produzem... O escorrer silencioso dos anos ameniza de tal forma as agruras das chagas da memória que as cicatrizes são esquecidas e passam despercebidas sob a poeira fina que o tempo deixa com desdem.
É então que o girar do mundo leva as pessoas de volta aos lugares onde a esperança é mais docemente venenosa e a ilusão da ausência da solidão é mais enganadora.
Todo fim leva de volta ao começo! E todo começo leva ao mesmo fim!
A ferro e fogo são feitos os humanos. Todas a vidas já foram vividas e serão de de novo e de novo. Nada de novo sob o Sol!
Assim sendo, Miguel voltou à cidade de seu nascimento e de toda a sua vida. Como nada muda de verdade, as coisas eram como antes, mas com ligeiras sutilezas modificadas segundo o capricho dos homens. Apenas uma coisa perecia estranhamente alienígena e provida de um despropósito quase intencional: na grande ilha defronte a sua peninsular cidade havia sido erguido um centro aeroespacial de lançamento de foguetes!
Como o resto pareceu a Miguel pouco ou nada diferente, movido mais por costume que por saudade, regressou à sua antiga casa e tentou de todas as formas apaziguar seus sentimentos de nostalgia, pois o medo aterrador havia cedido lugar à saudade de um tempo e lugar que pareciam apenas ter existido na sua imaginação, pois a desolação da casa, o ar úmido e mofento trouxeram-lhe uma certeza putativa que aquele lugar nunca tinha sido habitado por pessoas vivas, mas sim por formas espectrais oriundas de seus sonhos e devaneios.
Entretanto, disposto a redimir-se dos anos de ostracismo vergonhoso e da covardia paralizante do opróbrio, ele lançou-se na extenuante tarefa de revivier os ares de melhores e mais felizes dias da casa que seria outra vez sua morada. Uma reconciliação tardia com sua consciência e um sincero pedido de desculpas que ele jamais precisaria fazer.
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