quarta-feira, 5 de março de 2008

Capítulo 3


Ele nunca havia visto em toda a sua existência uma luz tão clara, forte e ainda assim tão serena como aquela que, mesmo através de sua pálpebra, o fazia esquecer que já havia visto a luz do Sol ao meio-dia nas proximidades do Equador por incontáveis vezes, tal era a diferença de intensidade entre ambas.

Um melodia ancestral preenchia o vazio em que se encontrava. Embora ele não tenha estado lá, sabia que aquela melodia harmoniosa só poderia ser a mesma que se fez ouvir no momento da Criação. Era a “música tema” do Big-bang!

Foi nesse momento, em que sua mente voltou ao princípio de tudo, que ele ouviu uma voz docemente familiar, cheia de ternura e que o fez abrir os olhos.

– Qual é o teu nome? – perguntou-lhe a voz que emanava de uma figura difusa que paira três metros acima de sua cabeça.

– Miguel! Miguel Águila! – sua resposta foi proferida como o último desejo de um condenado pois, indubitavelmente, aquele só podia ser o dia do seu “Julgamento Final”.

– Sabes tu o que teu nome significa? – a pergunta veio cheia de urgência.

– Sim! Sei bem o significado dos dois nomes! – disse com uma resignação aflita.

A resposta pareceu ter agradado o ser etéreo a ponto dele parecer sorrir e mesmo saltar uma leve gargalhada.

– O significado do teu primeiro nome podemos deixar para uma de nossas próximas conversas, pois o tempo dele ser colocado a prova ainda não é este!

Nesse instante, como uma concessão de pura benevolência, o espectro desceu e pôs-se de pé diante dele.

– Nossa conversa se deterá por hora no teu segundo nome: Águila!

Miguel sabia desde cedo que seu sobrenome vinha do espanhol e queria dizer “águia”. O significado etimológico o havia contentado até então, mas agora ele percebera-se instigado com uma curiosidade repentina a cerca de algo que sempre lhe parecera familiar, mas que de súbito tornou-se misterioso.

– Teu sobrenome significa “águia”! Sei que sabes isto, mas sabes o segredo das águias? – a pergunta soou como um desafio.

Antes que ele tivesse tempo de pensar no “segredo das águias”, a resposta veio fulminante:

– As águias podem atingir os setenta anos de vida, mas não antes de, por volta dos quarenta anos, precisarem tomar uma decisão difícil e dolorosa: ou se impõe um processo doloroso de renovação ou morrem!

A atenção de Miguel estava totalmente voltada para as palavras hipnotizantes daquela figura fantasmagórica. Estava completamente absorto e a claridade cegante parecia não o incomodar mais.

– Suas unhas, outrora poderosas, encontram-se recurvadas e flexíveis; os bicos fortes e alongados, tornaram-se curvos e deixaram de ser pontiagudos. As asas, antes imponentes, estão prostradas contra o peito, pesadas por contas da grossuras das penas envelhecidas. O próprio vôo tornou-se uma tarefa de difícil execução.

Capítulo 2

Passava um pouco das sete horas quando ele acordou naquela manhã de domingo. Miguel olhou pela janela e viu a torrida chuva caindo nas folhas das mangueiras e soube no mesmo instante que finalmente o inverno havia chegado para valer. Ao menos na Cidade das Mangueiras havia chegado a “época das chuvas”, o “inverno” dos paraenses, embora no resto do Hemisfério Sul fosse verão, pois só havia duas estações bem definidas em Belém do Pará: a estação em que chovia muito e a estação em que chovia pouco, ou seja, “inverno” e “verão” respectivamente.

Levantou-se da cama, passou pelo banheiro e depois de um banho morno sentou-se a mesa para comer uma tapioca com manteiga e outra com coco ralado – molhado com leite de coco – e tomar um suco de bacuri que tanto gostava. Pensava consigo mesmo no sabor incomparável do bacuri, talvez só rivalizado com o do cupuaçú, embora este último tivesse um atrativo a mais: o cheiro enebriante que por si só já salivava a boca.

Quando a última gota de suco foi sorvida, o celular tocou. Sua vida iria mudar para sempre depois daquela ligação. Como que pressentindo um futuro ainda inexistente, lembrou-se do dia em sua infância em que viu pela primeira vez o Círio de Nazaré de perto e, neste instante, aquele antigo sentimento de profunda comunhão manifesto em uma onda humana de fé, que havia caído há muito no esquecimento, o fez dizer um comando corriqueiramente ordinário como se fosse uma oração de súplica:

– Atender telefone...

Era uma vídeo-chamada e por isso, como acabara de sair do banho, preferiu redirecioná-la para a televisão, somente como forma de protesto.

As palavras soaram mais monótonas dessa vez, pois ele agora estava irritado com a petulância de quem queria uma videoconferência logo pela tenra manhã de um dia de domingo. Talvez fosse alguém do laboratório querendo impressioná-lo com uma demonstração patética de inexistência de vida pessoal e total subserviência ignóbil ao trabalho. E Miguel detestava essa herança da ética protestante, pois achava que a máxima “o trabalho dignifica o homem” só servia para criar serviçais resignados com a vida de gado que eram moldados a cultivar, sem vontade de gritar, sem nada a dizer.

– Exibir cel-TV! – disse ao olhar de soslaio para a televisão de plasma de cinquenta polegadas.

A imagem da jovem que apareceu em meio a brumas fantasmagóricas lhe chamou a atenção imediatamente.

Lágrimas escarlates arranhavam-lhe a face de tez esvaecida! E ainda assim, a altivez de um anjo vingador cingia-lhe o cenho, como um diadema na fronte de uma rainha.

– A Lua! – uma voz capaz de comandar um deus soou de forma límpida e ao mesmo tempo embargada.

Quando o som já não se fazia mais ouvir, a não ser na mente atônita de Miguel, a ligação terminou tão inesperadamente quanto havia começado.

Ele se percebeu tremendo de frio na mais completa escuridão. Estava ainda em sua casa, mas já era noite. E lá estava ela, através da janela: a Lua! Impávida e colossal como ele nunca a havia visto! Contudo, havia algo de horripilante que fez seu sangue gelar mais que sua pele: a Lua estava rubra, escarlate como as lágrimas da jovem que ela vira pela manhã – se é que aquilo não passara de um sonho – ou talvez fosse um devaneio febril o fato dele ter perdido uma manhã e uma tarde de sua vida, se é que fora só esse o lapso de tempo que transcorrera. Nada mais parecia estar no mesmo lugr e na mesma ordem.

Mas aquela Lua cor de sangue trouxe-o de volta a terra dos vivos, ainda que ele, naquele momento, mais parecesse um ébrio desperto. Imediatamente a voz da jovem voltou a reverberar em seu cérebro e ele disse de forma cálida:

– A Lua!

Capítulo 1

Ele passou a perguntar-se onde poderia ter errado se tudo quanto havia feito na vida sempre lhe pareceu certo. Talvez esse fosse o problema: pensar que o que sempre lhe pareceu certo fosse realmente o certo. Viver segundo suas crenças mais íntimas trouxe-lhe paz e harmonia interior durante toda a sua vida. Não mais!

Após doze longos e extenuantes anos atuando como membro ativo de sua comunidade paroquial, Miguel viu sua fé desvanecer como testemunhou definhar a chama de vida de sua amada esposa, vítima de um trágico e fulminante câncer ósseo. Foram meses de agonia compartilhada por duas almas que haviam prometido viver juntas até que a morte as separasse... e assim foi.

Sua dor parecia não poder ser maior... mas foi! Além da dilacerante sensação de perda de uma companheira tão fiel e amiga – explorando ao máximo a literalidade destas palavras – Miguel viu-se lançado no vale desolador da falta de esperança. Falta de esperança esta motivada pela aterradora constatação que toda a sua auto-proclamada fé no “Senhor Ressuscitado” simplesmente desmoronou ante a percepção indelével da proximidade de sua própria morte, que inexoravelmente tornou-se a única certeza restante. Não obstante, foi particularmente desconcertante para uma pessoa que por toda vida buscara arduamente virtudes tais como a compaixão e piedade para com os seus semelhantes, o medo paralisante que se instalou em seu coração com relação a sua própria mortalidade em detrimento a qualquer sentimento mais reconfortante relacionado com a morte de Valéria – amada e devotada cônjuge por alegres, inesquecíveis e incomensuravelmente belos sete anos. A acalentadora e pia crença na “Vida Eterna”, ofertada pela “Misericórdia Divina” aos “Justos” no “Último Dia” deixou de fazer parte de sua mais idiossincrática construção intelectual do mundo. A fé de Miguel havia morrido com Valéria.

Tal qual o câncer que aos poucos consumiu a chama de uma vida tão radiante quanto a de sua amada, um súbito e aterrador sentimento passou a tirar-lhe o fôlego e o fazia acordar resfolegante durante a noite em acessos de pânico dignos de um condenado a cadeira elétrica às vésperas de seu derradeiro dia como “estorvo” – como é cômodo pensar – para a sociedade.

Tal sentimento chamava-se vaidade! Vaidade pura e selvagem em sua forma mais primitiva e depravadamente desnuda, que traduziu-se num desesperado apego a própria existência física neste mundo. Uma angústia quase palpável apossou-se dele de tal forma que o fez idolatrar sua própria consciência do “eu” – o “eu” que faz todo homem ser verdadeiramente humano – e repugnar a mera menção da dor lancinante que era o conhecimento intrínseco ao mais remoto recôndito do seu âmago de que, desde o exato momento de sua concepção, ele estava fadado a retornar ao “não-existir”, ao lugar comum da matéria inerte que constitui o universo que lhe emprestava o sumo e propiciava-lhe uma tênue experiência de divindade que a hermenêutica humana convencionou chamar... vida!

Outrora a fé mantinha-o resignado perante tão desnorteadora verdade, mas a vergonha de tão degradante demonstração de auto-piedade o fez perceber que o que mais lhe causava tormento não era a falta de Valéria, e sim os constantes acessos de pavor ao pensar em sua própria morte. Era sobremaneira vergonhoso para alguém tão despojado de orgulho e por demais doado aos menos favorecidos de toda espécie. Pensar primeiro em si e menosprezar a perda dela – ainda que isto rendesse-lhe profícuo amargor em vários momentos – não era aceitável e pois em xeque as poucas crenças que ainda lhe restavam.

Foi então que Miguel decidiu mudar para uma pacata cidade do interior, deixando para trás uma próspera e já consagrada carreira de engenheiro de uma grande empresa. Era um auto-exílio e ao mesmo tempo uma peregrinação desesperada em busca do que se perdera. Ao menos era isso que ele vivia repetindo vezes a fio, como quem quer convencer a si mesmo de algo que não se faz crível por conta própria. E assim foi...

O passar do meses deu lugar ao passar dos anos. E nem as águas gélidas dos igarapés mais tintos como vinho ou mesmo o gosto cálido de um mar salobro e argiloso puderam fazer Miguel esquecer o ardor de um coração bombardeado pela fadiga da solidão que acompanha indelevelmente cada ser humano até o túmulo.

Mas não importa o tamanho da dor que as feridas impingidas pela vida produzem... O escorrer silencioso dos anos ameniza de tal forma as agruras das chagas da memória que as cicatrizes são esquecidas e passam despercebidas sob a poeira fina que o tempo deixa com desdem.

É então que o girar do mundo leva as pessoas de volta aos lugares onde a esperança é mais docemente venenosa e a ilusão da ausência da solidão é mais enganadora.

Todo fim leva de volta ao começo! E todo começo leva ao mesmo fim!

A ferro e fogo são feitos os humanos. Todas a vidas já foram vividas e serão de de novo e de novo. Nada de novo sob o Sol!

Assim sendo, Miguel voltou à cidade de seu nascimento e de toda a sua vida. Como nada muda de verdade, as coisas eram como antes, mas com ligeiras sutilezas modificadas segundo o capricho dos homens. Apenas uma coisa perecia estranhamente alienígena e provida de um despropósito quase intencional: na grande ilha defronte a sua peninsular cidade havia sido erguido um centro aeroespacial de lançamento de foguetes!

Como o resto pareceu a Miguel pouco ou nada diferente, movido mais por costume que por saudade, regressou à sua antiga casa e tentou de todas as formas apaziguar seus sentimentos de nostalgia, pois o medo aterrador havia cedido lugar à saudade de um tempo e lugar que pareciam apenas ter existido na sua imaginação, pois a desolação da casa, o ar úmido e mofento trouxeram-lhe uma certeza putativa que aquele lugar nunca tinha sido habitado por pessoas vivas, mas sim por formas espectrais oriundas de seus sonhos e devaneios.

Entretanto, disposto a redimir-se dos anos de ostracismo vergonhoso e da covardia paralizante do opróbrio, ele lançou-se na extenuante tarefa de revivier os ares de melhores e mais felizes dias da casa que seria outra vez sua morada. Uma reconciliação tardia com sua consciência e um sincero pedido de desculpas que ele jamais precisaria fazer.